Um, dois passos. Viro a esquina sob a faísca amarelada de um poste de iluminação. De repente, acende-se uma outra luz. O foco que sai por entre a janelinha duma casa bonita e confortável. O quê, provavelmente, haveria dentro daquela casa de idosos – que poderia ser a minha? Uma antiga mobília ou cristaleira lembrando-os do progresso da família, dos seus valores. Algo que nos entretenha na mais vaga das lembranças. Objetos comodamente ajustados à realidade para dar sentido às coisas. Um bocado de familiaridade para nos convencer de que o faqueiro dos entes queridos ali guardado não irá machucar ninguém, nunca. Algo que entorpeça e nos faça acreditar que estamos hermeticamente seguros e felizes no abrigo do nosso lar. Uma realidade plástica, artificial e exultante!
Um pouco mais à frente acabo por esbarrar num dos cinco juvenis e desocupados rapazes à procura de uma boa briga ou de um simples flerte. Nada demais, só as diplomáticas desculpas e estou a salvo. As coisas terminam por aí; a figuração passageira nas suas vidas se dá por completa – um pretenso falso brigão pela madrugada. Eles esperavam mais da minha personagem nada agradável, o que lhes pareceu valer o motivo pelo qual saíram das suas casas. Não era o caso. Eu parecia ter arrancado algo deles: o seu doce preferido ou o prato que as suas mães preparam com maior afinco para deliciar-lhes o paladar no almoço de domingo com a família toda reunida. Mas não faz mal, dali um tempo eles deveriam estar encostados num lugar qualquer à espera dum traseiro exuberante; ou nem tanto. No fim, eles só queriam matar o tédio – veja só!
Desço toda a rua estreita de medo denso e desemboco no palácio dos atores da noite; é uma passagem pelo Centro, nada resta. Acabo por calhar num boteco de uma porta só... Eu nunca dou nada por uma porcaria dessas, mas uma única passagem é desrespeito ao consumidor que, com todo o seu esforço ou amargura, está ali para um pouco de diversão. O detalhe é que, quando menos se espera, sempre acabam esbarrando no seu copo e derrubam a merda toda no chão! Cagalhada por cagalhada, tome o quanto der e procure o próximo boteco. Sempre há algum por perto quando se precisa... Sem outra alternativa saudável para a situação, o melhor é deixar o inferno para os que se sentem a vontade com isso. Apago o cigarro tendo fumado apenas um terço. Não dispenso, guardo comigo. Dizem que, quando voltamos a fumá-lo, deixa um gosto horrível na boca. Não sei, pra mim, cigarro é cigarro! É uma escolha sensata: as baforadas nunca vão te levar a lugar nenhum, mesmo. Só tento ser coerente, não que de fato eu deva.
Ali! Um bichano à espera do cio alheio: orelhas atentas, ouriçado e com vontade foder. O instinto respeita as mesmas regras do que as do ser humano: ou se faz o suficiente para ganhar o par ou se perde a alma. Será que gatos broxam? Porra! Se não broxam, a natureza foi muito injusta com o homem... Todos deveriam ter o direito de ficar com o mastro hasteado quando assim o desejassem. Estamos progredindo, agora é só chegar no consultório e botar as coisas todas na mesa (e às claras): “ - Doutor. Minha mulher vai me abandonar se eu não a traçar até a hora do jantar! Você seria capaz de acabar com o nosso lar?” (Não se pode esquecer do amor, também. É sempre uma boa palavra para se usar quando tudo mais ruiu.) A natureza é realmente sábia, os gatos nem devem saber o que é o amor! Pobres animais sem esperança...
O engraçado: andando pelas calçadas esburacadas do terceiro mundo, você acaba tendo que prestar atenção. No que faria sem mais no espelhado piso dos grandes centros de compras. Enquanto aqui fora o quotidiano segue ininterrupto mesmo com as suas fissuras, lá dentro não há preocupações. Estamos livres para sermos nós mesmos, não é inacreditável!? Seria bom se pudéssemos ser um monte de coisas do tipo Benz, Armani ou Chanel. O poder do dinheiro nos faz levitar! Mas lhe cospe na cara e te faz conhecer o inferno, com as promissórias passando por sob a porta. Uma a uma: cada dia mais. A tragédia absurda (e atual) do Fausto Nosso de Cada Dia. A lembrança de que você tentou ser alguém, mas falhou quando teve que entregar a sua casa por um par de meias e calças novas, um bom par de sapatos lustrosos e um paletó sem marca na intenção de arranjar algum trabalho.
Certas coisas por aí me parecem falsas; assim como algumas que penso. Nunca estive certo de muita coisa, elas nunca param de acontecer. São como abelhas ou qualquer outra dessas coisinhas que nos atormentam a paz. Às vezes, o vazio da t.v. é a única companhia agradável o suficiente. As idéias são traiçoeiras para a maioria das pessoas, a t.v. não. O que uma caixa com uma luz dentro poderia fazer por pessoas? Bem, também inventamos o Cubo Mágico, conexões inconcebíveis e imaginação à flor da pele. Ninguém agüenta um treco desses quando o que se quer é só relaxar, ou desmaiar no sofá. Não é muito bom se perguntar demais sobre as coisas: ora ou outra elas vão querer saber quem as está chamando. E aí pode acontecer de não se agüentar o peso delas sobre você. Só me resta voltar para o abrigo e pensar que lá fora está sempre mais ou menos tudo funcionando. Isso é tudo.
Abro a porta e ela, em respeito, quase uma saudação, me interpela com um forte rangido querendo saber como foi o meu dia. Ao que respondo com o não dito do silêncio. Com as pessoas é diferente... Invariavelmente estamos presos a nós mesmos, e o que nos resta é falar sem parar em busca de algum sentido para toda a interação. Mas, ainda assim, acho que o sinal mais agudo de empatia entre as pessoas é sustentar o não dito sem a responsabilidade de ocupar todo o tempo servindo-se de um falatório sem fim. Um sentimento que comprova que a fala nem sempre é necessária para se conhecer as pessoas. Basta pensar que podemos conviver com estranhos a vida toda, almoçar, trepar e trabalhar com eles sem ao menos saber quem são. A minha velha porta sempre estará ali, me esperando das bebedeiras sem fim. Basta girar a maçaneta, e escutar o seu ruído, que estarei a salvo da vida lá fora. Sem perguntas nem respostas, cumprimentos sem sentido ou qualquer outra coisa que me faça lembrar das pessoas. Estou a salvo, finalmente!
[Este simples esboço é dedicado a um dos olhares mais cínicos e agudos do nosso tempo: Henry Charles Bukowski Jr.]
Um comentário:
"Ali! Um bichano à espera do cio alheio: orelhas atentas, ouriçado e com vontade [de] foder."
hehehehehe
Perece-me com pessoas que conhecemos, não? As outras pessoas "normais ou não" devem ter esse mesmo tipo de racicínio quando veem estas tais pessoas. Certeza.
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