terça-feira, 7 de agosto de 2007

Os Limites da Cidade


Há muito os dias não se assemelham à tempestade sob a qual crianças e jovens gozam em alegria sentindo o calafrio subir pelos ombros, roçar as nucas e atirar-se suicida acariciando (ao longo) os pêlos por sobre a pele. À vista, agora, me restam apenas um copo contendo pela metade a lembrança do ruído que incomoda e uma garrafa vazia daquilo que talvez nem tivesse importância ter ingerido.

A máquina bate mal ao ser tocada pelos dedos em harmonia. A única sustentação aos seus rangidos mambembes é a mesa de madeira simples acompanhada por apenas mais uma cadeira, porém bastante bonita e rara resistência aos cupins que a tentam penetrar. A sua ruidosa engrenagem e composição já nem bem compreendem mais os anseios do tempo. O pensamento exige a virtualidade que lhe é própria, e o carbono das mãos já não permite expressar.

O tempo não se confunde com nada no quarto, naturalmente mal iluminado, de um segundo andar num prédio barato e qualquer do centro. Vago o olhar pela janela intencionando os limites da cidade. Ao debruçar do corpo curioso no parapeito, bruscamente se precipita o caos ao abrigo imaculado pelo ruído dissonante. Lá fora, nas ruas de toda parte, o descompasso anacrônico dos transeuntes, máquinas e obrigações repelem de volta o olhar do estrangeiro sitiado: o tempo e seu silêncio sagrado.

No interior deste templo reservado a Chronos reprovo-lhe o ungüento e oferto em devoção a liberdade de sê-lo. A sua imponência, no distante do altar, reflete de maneira tosca e confusa o ar cansado da idade que me reveste no erro. Os passos precipitados de um corpo, outrora são, deram vez a outros agora meticulosamente comedidos e, igualmente, firmes. O obelisco de Delfos se vê esvaziar na esquina de fronte ao prédio de mais quartos baratos e prostitutas - oposto à janela pela qual de fato os observo.

Vista de outro modo, a realidade das máquinas, obrigações e transeuntes não se deslocou um só tanto - apenas disposição. A ficção de tê-los visto mudar adverte sobre a incerteza do próximo passo. Busco em desespero o socorro da visão confortável e familiar das dimensões revestidas de concreto, pintura e retratos que me ninam inanimadas o corpo sem desejar sequer uma só importância: a mãe solitária na sua condição única de presenciar o sorriso débil de sua cria fantasma em segredo umbilical.

Aqui de dentro não há corpos - celestes, mecânicos ou compostos de carne, sangue e fluídos - que possam entorpecer o olhar curioso à busca de sua origem; despeço-me então com a alegria do pensamento hesitante em direção ao desconhecido para dentro de si: que já não se orienta pelo brilho fictício que se perde no tempo e no espaço, mas pelo eterno e indeterminado do abismo que leva todos, com pompa e coragem, em sua carruagem para o passo decisivo, uma revolução particular dos costumes quase inadiável, de não mais poder voltar ao que antes, habitualmente, chamava-se realidade.

segunda-feira, 14 de maio de 2007

A Máquina



O trem havia chegado à estação tomada por toda variedade de gente. Procurava alcançar os primeiros lances de escada logo mais à espera eterna dos corpos em movimento. Ali havia multidões envolvidas por laços de sangue se saudando freneticamente tão mais se aproximava a partida da grande serpente férrea.

Se aquela coisa tivesse fome poderia até nos engolir, pois foi bem assim o acontecido. Hipnotizou a todos, e entrávamos sem resistência numa fila indiano-tupiniquim. A cena geral lembrava mais uma cópula de seres mitológicos com a massa de carne fresca penetrando o grande monstro de ferro num ângulo perpendicular.

Passado o frenesi inicial, o ritual da passagem e toda excitação despendida, repousaram leves e confortáveis os corpos lânguidos em seus respectivos assentos. A grande maioria parecia desejante em acender os seus cigarros, charutos e cachimbos. Porém, não houve um só ruído de bolsas, malas ou bagagens de qualquer espécie.

Saquei uma bala sabor gengibre no bolso da camisa e passei os olhos mirando a curvatura daquela imensidão metálica e suas ligas se estendendo rumo ao infinito. Deitada, tentando se restabelecer da fadiga passageira pela qual acabara de ser submetida - talvez por isso estivesse soltando pequenas baforadas intermitentes de cansaço.

A máquina tomava partida rumo ao caminho fatídico dos trilhos em seu destino. Não era realmente livre como haveria supor ao admirar tantas paisagens interioranas assim também outras escolhas a serem feitas em bifurcações no transcorrer do curso. Mas os trilhos sempre ditariam o seu horizonte. Era melhor fazer de conta não vê-los - mesmo que à noite os faroletes insistissem estar voltados para lá.

As imagens começavam a passar com uma pressa cada vez maior em sentido oposto. Ninguém ali dentro sabia para aonde elas iam tão efêmeras daquele jeito. Rostos e realidades perfuravam a janela ao meu lado, quase mortíferas. Aquelas pessoas e ocupações quotidianas refletiam ao sol quadros estáticos dispostos de maneira a causar nos olhos a impressão de que eram animadas. Não eram de fato, não a mim.

Aquela arte pictórica tomava forma e movimento à medida que deles a máquina se aproximava extraindo cortes bem definidos de cada uma das vidas e se distanciava abandonando-as em sua ordinariedade. A grande serpente mitológica emitia ruidosamente agora o som da noite. Éramos semi-deuses em suas escamas e nada se entendia daquelas vidas marginais abandonadas à sorte por sobre os campos. O Leviatã seguia magistral pelas variadas constelações, não havia norte nem chegada. Nunca mais parara, e nos levara aos céus.