segunda-feira, 24 de março de 2008

Só de Passagem...



Um, dois passos. Viro a esquina sob a faísca amarelada de um poste de iluminação. De repente, acende-se uma outra luz. O foco que sai por entre a janelinha duma casa bonita e confortável. O quê, provavelmente, haveria dentro daquela casa de idosos – que poderia ser a minha? Uma antiga mobília ou cristaleira lembrando-os do progresso da família, dos seus valores. Algo que nos entretenha na mais vaga das lembranças. Objetos comodamente ajustados à realidade para dar sentido às coisas. Um bocado de familiaridade para nos convencer de que o faqueiro dos entes queridos ali guardado não irá machucar ninguém, nunca. Algo que entorpeça e nos faça acreditar que estamos hermeticamente seguros e felizes no abrigo do nosso lar. Uma realidade plástica, artificial e exultante!

Um pouco mais à frente acabo por esbarrar num dos cinco juvenis e desocupados rapazes à procura de uma boa briga ou de um simples flerte. Nada demais, só as diplomáticas desculpas e estou a salvo. As coisas terminam por aí; a figuração passageira nas suas vidas se dá por completa – um pretenso falso brigão pela madrugada. Eles esperavam mais da minha personagem nada agradável, o que lhes pareceu valer o motivo pelo qual saíram das suas casas. Não era o caso. Eu parecia ter arrancado algo deles: o seu doce preferido ou o prato que as suas mães preparam com maior afinco para deliciar-lhes o paladar no almoço de domingo com a família toda reunida. Mas não faz mal, dali um tempo eles deveriam estar encostados num lugar qualquer à espera dum traseiro exuberante; ou nem tanto. No fim, eles só queriam matar o tédio – veja só!

Desço toda a rua estreita de medo denso e desemboco no palácio dos atores da noite; é uma passagem pelo Centro, nada resta. Acabo por calhar num boteco de uma porta só... Eu nunca dou nada por uma porcaria dessas, mas uma única passagem é desrespeito ao consumidor que, com todo o seu esforço ou amargura, está ali para um pouco de diversão. O detalhe é que, quando menos se espera, sempre acabam esbarrando no seu copo e derrubam a merda toda no chão! Cagalhada por cagalhada, tome o quanto der e procure o próximo boteco. Sempre há algum por perto quando se precisa... Sem outra alternativa saudável para a situação, o melhor é deixar o inferno para os que se sentem a vontade com isso. Apago o cigarro tendo fumado apenas um terço. Não dispenso, guardo comigo. Dizem que, quando voltamos a fumá-lo, deixa um gosto horrível na boca. Não sei, pra mim, cigarro é cigarro! É uma escolha sensata: as baforadas nunca vão te levar a lugar nenhum, mesmo. Só tento ser coerente, não que de fato eu deva.

Ali! Um bichano à espera do cio alheio: orelhas atentas, ouriçado e com vontade foder. O instinto respeita as mesmas regras do que as do ser humano: ou se faz o suficiente para ganhar o par ou se perde a alma. Será que gatos broxam? Porra! Se não broxam, a natureza foi muito injusta com o homem... Todos deveriam ter o direito de ficar com o mastro hasteado quando assim o desejassem. Estamos progredindo, agora é só chegar no consultório e botar as coisas todas na mesa (e às claras): “ - Doutor. Minha mulher vai me abandonar se eu não a traçar até a hora do jantar! Você seria capaz de acabar com o nosso lar?” (Não se pode esquecer do amor, também. É sempre uma boa palavra para se usar quando tudo mais ruiu.) A natureza é realmente sábia, os gatos nem devem saber o que é o amor! Pobres animais sem esperança...

O engraçado: andando pelas calçadas esburacadas do terceiro mundo, você acaba tendo que prestar atenção. No que faria sem mais no espelhado piso dos grandes centros de compras. Enquanto aqui fora o quotidiano segue ininterrupto mesmo com as suas fissuras, lá dentro não há preocupações. Estamos livres para sermos nós mesmos, não é inacreditável!? Seria bom se pudéssemos ser um monte de coisas do tipo Benz, Armani ou Chanel. O poder do dinheiro nos faz levitar! Mas lhe cospe na cara e te faz conhecer o inferno, com as promissórias passando por sob a porta. Uma a uma: cada dia mais. A tragédia absurda (e atual) do Fausto Nosso de Cada Dia. A lembrança de que você tentou ser alguém, mas falhou quando teve que entregar a sua casa por um par de meias e calças novas, um bom par de sapatos lustrosos e um paletó sem marca na intenção de arranjar algum trabalho.

Certas coisas por aí me parecem falsas; assim como algumas que penso. Nunca estive certo de muita coisa, elas nunca param de acontecer. São como abelhas ou qualquer outra dessas coisinhas que nos atormentam a paz. Às vezes, o vazio da t.v. é a única companhia agradável o suficiente. As idéias são traiçoeiras para a maioria das pessoas, a t.v. não. O que uma caixa com uma luz dentro poderia fazer por pessoas? Bem, também inventamos o Cubo Mágico, conexões inconcebíveis e imaginação à flor da pele. Ninguém agüenta um treco desses quando o que se quer é só relaxar, ou desmaiar no sofá. Não é muito bom se perguntar demais sobre as coisas: ora ou outra elas vão querer saber quem as está chamando. E aí pode acontecer de não se agüentar o peso delas sobre você. Só me resta voltar para o abrigo e pensar que lá fora está sempre mais ou menos tudo funcionando. Isso é tudo.

Abro a porta e ela, em respeito, quase uma saudação, me interpela com um forte rangido querendo saber como foi o meu dia. Ao que respondo com o não dito do silêncio. Com as pessoas é diferente... Invariavelmente estamos presos a nós mesmos, e o que nos resta é falar sem parar em busca de algum sentido para toda a interação. Mas, ainda assim, acho que o sinal mais agudo de empatia entre as pessoas é sustentar o não dito sem a responsabilidade de ocupar todo o tempo servindo-se de um falatório sem fim. Um sentimento que comprova que a fala nem sempre é necessária para se conhecer as pessoas. Basta pensar que podemos conviver com estranhos a vida toda, almoçar, trepar e trabalhar com eles sem ao menos saber quem são. A minha velha porta sempre estará ali, me esperando das bebedeiras sem fim. Basta girar a maçaneta, e escutar o seu ruído, que estarei a salvo da vida lá fora. Sem perguntas nem respostas, cumprimentos sem sentido ou qualquer outra coisa que me faça lembrar das pessoas. Estou a salvo, finalmente!

[Este simples esboço é dedicado a um dos olhares mais cínicos e agudos do nosso tempo: Henry Charles Bukowski Jr.]

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Os Limites da Cidade


Há muito os dias não se assemelham à tempestade sob a qual crianças e jovens gozam em alegria sentindo o calafrio subir pelos ombros, roçar as nucas e atirar-se suicida acariciando (ao longo) os pêlos por sobre a pele. À vista, agora, me restam apenas um copo contendo pela metade a lembrança do ruído que incomoda e uma garrafa vazia daquilo que talvez nem tivesse importância ter ingerido.

A máquina bate mal ao ser tocada pelos dedos em harmonia. A única sustentação aos seus rangidos mambembes é a mesa de madeira simples acompanhada por apenas mais uma cadeira, porém bastante bonita e rara resistência aos cupins que a tentam penetrar. A sua ruidosa engrenagem e composição já nem bem compreendem mais os anseios do tempo. O pensamento exige a virtualidade que lhe é própria, e o carbono das mãos já não permite expressar.

O tempo não se confunde com nada no quarto, naturalmente mal iluminado, de um segundo andar num prédio barato e qualquer do centro. Vago o olhar pela janela intencionando os limites da cidade. Ao debruçar do corpo curioso no parapeito, bruscamente se precipita o caos ao abrigo imaculado pelo ruído dissonante. Lá fora, nas ruas de toda parte, o descompasso anacrônico dos transeuntes, máquinas e obrigações repelem de volta o olhar do estrangeiro sitiado: o tempo e seu silêncio sagrado.

No interior deste templo reservado a Chronos reprovo-lhe o ungüento e oferto em devoção a liberdade de sê-lo. A sua imponência, no distante do altar, reflete de maneira tosca e confusa o ar cansado da idade que me reveste no erro. Os passos precipitados de um corpo, outrora são, deram vez a outros agora meticulosamente comedidos e, igualmente, firmes. O obelisco de Delfos se vê esvaziar na esquina de fronte ao prédio de mais quartos baratos e prostitutas - oposto à janela pela qual de fato os observo.

Vista de outro modo, a realidade das máquinas, obrigações e transeuntes não se deslocou um só tanto - apenas disposição. A ficção de tê-los visto mudar adverte sobre a incerteza do próximo passo. Busco em desespero o socorro da visão confortável e familiar das dimensões revestidas de concreto, pintura e retratos que me ninam inanimadas o corpo sem desejar sequer uma só importância: a mãe solitária na sua condição única de presenciar o sorriso débil de sua cria fantasma em segredo umbilical.

Aqui de dentro não há corpos - celestes, mecânicos ou compostos de carne, sangue e fluídos - que possam entorpecer o olhar curioso à busca de sua origem; despeço-me então com a alegria do pensamento hesitante em direção ao desconhecido para dentro de si: que já não se orienta pelo brilho fictício que se perde no tempo e no espaço, mas pelo eterno e indeterminado do abismo que leva todos, com pompa e coragem, em sua carruagem para o passo decisivo, uma revolução particular dos costumes quase inadiável, de não mais poder voltar ao que antes, habitualmente, chamava-se realidade.

segunda-feira, 14 de maio de 2007

A Máquina



O trem havia chegado à estação tomada por toda variedade de gente. Procurava alcançar os primeiros lances de escada logo mais à espera eterna dos corpos em movimento. Ali havia multidões envolvidas por laços de sangue se saudando freneticamente tão mais se aproximava a partida da grande serpente férrea.

Se aquela coisa tivesse fome poderia até nos engolir, pois foi bem assim o acontecido. Hipnotizou a todos, e entrávamos sem resistência numa fila indiano-tupiniquim. A cena geral lembrava mais uma cópula de seres mitológicos com a massa de carne fresca penetrando o grande monstro de ferro num ângulo perpendicular.

Passado o frenesi inicial, o ritual da passagem e toda excitação despendida, repousaram leves e confortáveis os corpos lânguidos em seus respectivos assentos. A grande maioria parecia desejante em acender os seus cigarros, charutos e cachimbos. Porém, não houve um só ruído de bolsas, malas ou bagagens de qualquer espécie.

Saquei uma bala sabor gengibre no bolso da camisa e passei os olhos mirando a curvatura daquela imensidão metálica e suas ligas se estendendo rumo ao infinito. Deitada, tentando se restabelecer da fadiga passageira pela qual acabara de ser submetida - talvez por isso estivesse soltando pequenas baforadas intermitentes de cansaço.

A máquina tomava partida rumo ao caminho fatídico dos trilhos em seu destino. Não era realmente livre como haveria supor ao admirar tantas paisagens interioranas assim também outras escolhas a serem feitas em bifurcações no transcorrer do curso. Mas os trilhos sempre ditariam o seu horizonte. Era melhor fazer de conta não vê-los - mesmo que à noite os faroletes insistissem estar voltados para lá.

As imagens começavam a passar com uma pressa cada vez maior em sentido oposto. Ninguém ali dentro sabia para aonde elas iam tão efêmeras daquele jeito. Rostos e realidades perfuravam a janela ao meu lado, quase mortíferas. Aquelas pessoas e ocupações quotidianas refletiam ao sol quadros estáticos dispostos de maneira a causar nos olhos a impressão de que eram animadas. Não eram de fato, não a mim.

Aquela arte pictórica tomava forma e movimento à medida que deles a máquina se aproximava extraindo cortes bem definidos de cada uma das vidas e se distanciava abandonando-as em sua ordinariedade. A grande serpente mitológica emitia ruidosamente agora o som da noite. Éramos semi-deuses em suas escamas e nada se entendia daquelas vidas marginais abandonadas à sorte por sobre os campos. O Leviatã seguia magistral pelas variadas constelações, não havia norte nem chegada. Nunca mais parara, e nos levara aos céus.