segunda-feira, 14 de maio de 2007

A Máquina



O trem havia chegado à estação tomada por toda variedade de gente. Procurava alcançar os primeiros lances de escada logo mais à espera eterna dos corpos em movimento. Ali havia multidões envolvidas por laços de sangue se saudando freneticamente tão mais se aproximava a partida da grande serpente férrea.

Se aquela coisa tivesse fome poderia até nos engolir, pois foi bem assim o acontecido. Hipnotizou a todos, e entrávamos sem resistência numa fila indiano-tupiniquim. A cena geral lembrava mais uma cópula de seres mitológicos com a massa de carne fresca penetrando o grande monstro de ferro num ângulo perpendicular.

Passado o frenesi inicial, o ritual da passagem e toda excitação despendida, repousaram leves e confortáveis os corpos lânguidos em seus respectivos assentos. A grande maioria parecia desejante em acender os seus cigarros, charutos e cachimbos. Porém, não houve um só ruído de bolsas, malas ou bagagens de qualquer espécie.

Saquei uma bala sabor gengibre no bolso da camisa e passei os olhos mirando a curvatura daquela imensidão metálica e suas ligas se estendendo rumo ao infinito. Deitada, tentando se restabelecer da fadiga passageira pela qual acabara de ser submetida - talvez por isso estivesse soltando pequenas baforadas intermitentes de cansaço.

A máquina tomava partida rumo ao caminho fatídico dos trilhos em seu destino. Não era realmente livre como haveria supor ao admirar tantas paisagens interioranas assim também outras escolhas a serem feitas em bifurcações no transcorrer do curso. Mas os trilhos sempre ditariam o seu horizonte. Era melhor fazer de conta não vê-los - mesmo que à noite os faroletes insistissem estar voltados para lá.

As imagens começavam a passar com uma pressa cada vez maior em sentido oposto. Ninguém ali dentro sabia para aonde elas iam tão efêmeras daquele jeito. Rostos e realidades perfuravam a janela ao meu lado, quase mortíferas. Aquelas pessoas e ocupações quotidianas refletiam ao sol quadros estáticos dispostos de maneira a causar nos olhos a impressão de que eram animadas. Não eram de fato, não a mim.

Aquela arte pictórica tomava forma e movimento à medida que deles a máquina se aproximava extraindo cortes bem definidos de cada uma das vidas e se distanciava abandonando-as em sua ordinariedade. A grande serpente mitológica emitia ruidosamente agora o som da noite. Éramos semi-deuses em suas escamas e nada se entendia daquelas vidas marginais abandonadas à sorte por sobre os campos. O Leviatã seguia magistral pelas variadas constelações, não havia norte nem chegada. Nunca mais parara, e nos levara aos céus.